Um menino gente grande.
- Walter Labonia Filho
- 10 de jun.
- 5 min de leitura
Vovó Marieta trouxe ao consultório o neto João Carlos, de 13 anos, preocupada que estava com o excesso de peso do menino. É ela que lhe dá a janta todos os dias até que os pais o peguem em sua casa na volta do trabalho. Sem rodeios, angustiada, tomou a dianteira na consulta:
— Doutor, esse menino acha que está gordo e foi ele que quis vir ao médico...
Dona Marieta, com mais de setenta anos e minha cliente desde que meus cabelos eram todos pretos, inundou a sala com seu sotaque italiano lá da Mooca; agitava os braços rechonchudos e mostrava o semblante preocupado, como se o neto estivesse pele e osso (meu pai, sempre muito magro, dizia que os italianos têm medo de morrer de fome...).
— João, o que acontece? — perguntei, pois queria ouvir o que ele, e não a avó, tinha a dizer.
— Doutor, eu estou gordo e quero perder peso.
E dona Marieta, intrometida, mais uma vez antecipou-se:
— Imagina, doutor, ele está tão bonito, não sei por que fica pondo essas ideias na cabeça.
— Dona Marieta, por favor, deixe o João falar.
Ela se calou, um tanto a contragosto, e o menino continuou:
— Vê só a minha barriga, doutor — e segurou com as duas mãos o rolo de gordura que se notava por debaixo da roupa — acho feio, meus amigos tiram com a minha cara quando me veem sem camisa, ninguém me quer no time de futebol nem no jogo de queimada... sou muito lento, nem tenho mais vontade de ir para a escola ou de ir a uma festa que eles me convidam.
Seus olhos miravam o chão enquanto falava e me dei conta da tristeza e desilusão que emanavam de seu relato. Como um espectro, lembrei-me de adolescentes que puseram fim à vida por causa do preconceito e discriminação sofridos na escola.
Com a voz já a falsear entre graves e agudos, algumas espinhas na testa e um projeto de bigode, me vi como ele e ressenti a humilhação sofrida nos meus tempos de menino gordo. Barrica, leitão, geleia eram alguns dos “elogios” recebidos na vila onde eu morava e no colégio estadual onde fiquei até terminar o ensino médio. E a empatia para com ele brotou na hora.
Menino saudável, não havia problemas de saúde importantes no seu passado, mas me chamou a atenção o grau de sedentarismo em que vivia, pois tanto o apartamento da avó como o dos pais não dispunham de uma quadra de esportes. E as aulas de Educação Física da escola aconteciam apenas duas vezes por semana. Embora tudo o que comesse fosse quase sempre feito em casa, as calorias das massas, doces e frituras transbordavam nas suas refeições. Além do mais, as tardes que passava com a avó, estudando ou preso a alguma tela, eram regadas a bolinhos de chuva, queijo fresco com goiabada, pipoca, doce de leite, entre outros “agradinhos”.
Perguntei a ele se gostava de música e, antes que ele respondesse, vovó Marieta tomou a dianteira:
— Doutor, esse menino fica triste e até chora quando escuta música.
Sobressaltei-me, pois essa informação me fez pensar num remédio homeopático, o que se consolidou quando me disse que tinha crises de asma, principalmente no tempo frio e úmido.
Ao examiná-lo, pesou 69 kg e mediu 1,58 m, o que significava um excesso de peso já no patamar de obesidade. Sua língua estava coberta por uma fina capa de cinza esverdeada, seu abdome era globoso e ouvi ruídos de líquido se movendo quando o palpei durante o exame. Optei por orientar sua alimentação através da “tabela de pontos” do endocrinologista Professor Alfredo Halpern, da USP.
Acho muito prática essa tabela. Para entender como ela funciona, devemos ter em mente que o nosso peso, quando estamos saudáveis, é fruto de um balanço entre as calorias que ingerimos e as que gastamos. Ou seja, ninguém engorda ou emagrece simplesmente por estar estressado(a) ou ansioso(a), porque come de tarde ou de noite, porque tomou água ou não durante as refeições. Insisto, desde que estejamos saudáveis, engordamos porque comemos demais e gastamos de menos, e emagrecemos porque gastamos mais calorias do que ingerimos.
E uma das grandes vantagens dessa tabela é que foi criada por profissionais brasileiros, de modo que, nela, a nossa cultura alimentar está muito bem representada. Outra das suas vantagens é que o próprio interessado programa o que vai comer conforme seu objetivo. Porque, se estivermos apenas lidando com o peso, não importa o que ou quanto comemos e, sim, quantas calorias ingerimos.
Decidi orientá-lo para ingerir 300 pontos por dia, o que corresponde a cerca de 1080 calorias. E, para prescrever a ele o medicamento homeopático Natrum sulphuricum, considerei como sinais e sintomas: talvez pensamentos suicidas (pela sua tristeza e desencanto com a escola), a forte emoção ao ouvir música, o aspecto da língua, a distensão abdominal com líquido e gases no tubo digestivo, e as crises de asma que se manifestavam no tempo frio e úmido. Para finalizar, recomendei à avó que os pais de João Carlos o matriculassem em uma escola de judô, pois fora essa a atividade física que ele gostaria de fazer. Pedi que voltasse para nova consulta em um mês.
Ao entrar na minha sala, no retorno, João Carlos sorria e trajava uma camiseta justa onde não aparecia mais aquela protuberância abdominal de um mês atrás.
Como da outra vez, a avó tomou a frente e choramingou:
— Doutor, esse menino não come quase nada, vai pegar uma anemia, desmaiar de fraqueza no treino de judô...
Não contive o riso e ignorei-a.
— E aí, João, como vão as coisas?
— Tudo bem, doutor. Baixei a tabela no meu celular e conto os pontos todos os dias. Muitas vezes faço até menos de 300 pontos.
— E a fome?
— Nada demais, dá pra tolerar e, hoje, nem me incomoda. Acostumei a comer pouco.
— E o judô, como está?
— Bem bacana, treino três vezes por semana e no mês que vem vou ver se já mudo de faixa.
— E na escola, como estão as coisas?
— Mais ou menos na mesma. Eu também nem ligo mais porque fiz umas amizades legais no judô e, na escola, não vou pedir pra entrar num jogo, vou esperar que eles me convidem...
Impressionei-me não só com o biotipo que ele agora mostrava; mais ainda me marcaram a firmeza e a maturidade das suas atitudes e de seus argumentos. Coisa rara de se ver num adolescente, principalmente nos dias de hoje.
Ao exame, sua língua estava limpa, pulmões livres e o abdome estava plano e silencioso ao exame. A balança mostrou 64,5 kg e estava com 1,60 m. Perdera 4,5 kg, crescera 1 cm no último mês, ou seja, visivelmente “afinara” e, com isso, trazia um brilho de alegria no seu olhar. E dona Marieta não ousou abrir mais a boca, apenas apertou minha mão ao se despedir.
Comments