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O Médico no Bairro. Outra história.

  • Foto do escritor: Walter Labonia Filho
    Walter Labonia Filho
  • 28 de mar.
  • 4 min de leitura

― Dona Maria do Céu, estou achando estranho tudo isso ter começado de uma hora para outra –  a paciente reclamava de insônia, suspiros incontroláveis e uma apatia que a amarrava na cama por dias seguidos. ― Ainda mais a senhora, sempre tão disposta para resolver os abacaxis em que se metem seu marido e seus filhos.


― Pois é, doutor Walter, meu primo veio de Portugal faz uns dois meses para ver se montava uma padaria aqui no bairro e hospedou-se em minha casa ― ela explicou, começando a abrir o baú dos seus segredos; baixou os olhos e a voz. ― Ele é uma pessoa muito especial, sempre elogia minha comida, meu penteado, meu vestido, a arrumação da casa. É um homem do campo, tem uma quinta por lá. É forte, vigoroso, com mãos grandes e calejadas ― o suspiro longo e profundo prenunciou o que viria. ― O senhor sabe, doutor, meu marido é um grosso, só grita comigo, já lhe contei que nos seus acessos chega a me estapear, acha defeito em tudo que faço por mais que eu me esforce e vira um bebê chorão quando tem suas crises de enxaqueca. 


Respeitar seu silêncio foi o que melhor encontrei para encorajá-la a continuar desopilando o que a oprimida e, por que não, acabar com minha curiosidade. Ainda sem me encarar, tomou coragem mas, afônica, pigarreou para ir em frente:


―E meu primo, mais de uma vez, com educação, é claro, mas com firmeza, fala bem do tempero do meu caldo verde quando meu marido critica, elogia meu perfume quando o Nicanor diz que lhe dá dor de cabeça. Com ele em casa comecei a me sentir protegida ― e calou, agora apoiando o cotovelo no braço da cadeira com a mão sustentando a testa; com a zoada das crianças na sala de espera, custava a domar minha impaciência, até que ela, por fim, aprumou-se na cadeira, buscou meus olhos decidida e rompeu as amarras :― Há umas duas semanas, não resisti. Ele me agarrou na cozinha quando não tinha ninguém em casa. Me levou nos braços para o quarto ―, interrompeu seu relato porque não conteve o choro convulso; voltou a falar quando se acalmou. ― Fui muito feliz. Não entendo como um homem daquele, tão rude, pode ser tão delicado com uma mulher.


― Dona Céu, por favor, sente-se na maca.


O exame físico não mostrou anormalidades. Não fiz qualquer comentário, até porque não sabia o que falar. Deitada enquanto examinava seu abdômen, ela contemplava o teto com serenidade e suas mãos jaziam entreabertas ao lado do corpo. Para que dormisse melhor, receitei um ansiolítico no formulário azul de medicamentos controlados e procrastinei a indicação de uma psicoterapia porque, ela havia dito, o primo iria logo embora.


  ― Nicanor, antes de mais nada, obrigado pelo desembaraço da documentação da minha Brasília ― disse ao marido de dona Céu, um despachante conceituado no bairro a quem confiara a regularização dos documentos do meu carro novo. ― Quando deve chegar?


― Nâo tem de quê, doutor, quando precisar, às ordens. Amanhã deve chegar para mim, mando aqui no consultório para o senhor. 


Irritei-me por não ter comprado ainda poltronas maiores para os pacientes. Suas nádegas transbordavam. 


― O que está acontecendo?


― Minha enxaqueca, doutor, está terrível ― sua voz era forte, autoritária, como se me obrigasse a dar solução para sua dor.


― Você tem tomado os remédios da pressão? 


― Sim, a Céu só falta me dar na boca para eu não esquecer. Mas, ultimamente, tenho que tomar até dois comprimidos por dia do remédio que o senhor passou.


― Mas o que está acontecendo? Você estava melhor na última vez em que veio aqui ― e me veio um pensamento escrito em letras garrafais: CUIDADO. Para lembrar da confidencialidade que deveria nortear meu trabalho de médico, o que, além de ético, era imprescindível para não ser o pivô de uma catástrofe conjugal.


― Os negócios estão bem?


― Estão muito bem, doutor, estou até abrindo uma filial na Barra Funda. Não é nada com o trabalho, o problema está lá em casa ― cofiou o largo bigode negro e as bochechas gordas coraram quando me segredou, depois de uma pausa para enxugar o suor da testa com o lenço vermelho que tirou com dificuldade do bolso de trás da calça: ― Chegou um primo da minha mulher lá de Portugal, que falou que ia ficar quinze dias e já faz mais de um mês que está comendo e dormindo na minha casa e não resolve se vai abrir uma padaria ou volta lá pro cafundó de onde ele veio. O pior é que ele é um cara muito chato, dono da verdade, não concorda com nada do que eu falo e eu, por educação, afinal ele é meu hóspede, fico quieto. Mas a coisa ferve dentro de mim que parece que eu vou explodir.


― Você engordou ou estou enganado? 


― Doutor, minha vida, com esse primo da Céu lá em casa, está um inferno e só me resta comer. Falando nisso, doutor, quando ela vier aqui, vê se dá alguma coisa para ela se animar. Já esqueci quando foi a última vez que a gente transou.

 
 
 

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